Gilles Deleuze
por Enrique Landgrave
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O "castigo-pensador": de Supernanny a Rodin, em dez milissegundos

Post de Murilo Duarte Costa Corrêa, republicado aqui.









(Jo Frost, a Supernanny, em uma imagem com quilos de Photshop, e “o pensador”, de Rodin: pode não parecer, mas essa obra de arte foi inspirada em uma criancinha de castigo...)
Nunca comentei aqui, mas tenho horror ao Jornal Hoje. Mesmo assim, continuo assistindo – religiosamente -, porque acho interessante como ele funciona esquizofrenizando. A maior esquizóide de todas – uma esquizóide bipolar que vai da depressão à euforia histérica em dez milissegundos – é a ex-atriz e jornalista Sandra Annenberg; não é incomum assistir a coisas do tipo: ela anuncia com gravidade, franzindo o sobrolho: “Morrem mais três pessoas em um deslizamento de terra na região de Itaquera, na grande São Paulo”. Dez milissegundos..., e se abre um riso demente: “E o verão será dominado pelos tons de laranja – veja como a cor foi recebida nas rasteirinhas que prometem colorir a estação!” Graças às férias de fim de ano, ontem à tarde, quem estava “re”-presentando o telejornal era Rosana Jatobá. Menos bipolar, uma atriz menos escolada que Sandra.
Em meio às matérias ordinárias pequeno-burguesas pós-orgiásticas natalinas (férias, rodovia dos bandeirantes congestionada, como limpar a prataria usando limão e pasta dental, direitos do consumidor na troca dos presentes, liquidações de fim de ano), uma das matérias de destaque era sobre a educação das criancinhas pequenas; algo do gênero, “conheça o castigo-pensador e aposente a palmada”. Falando sobre o tema, uma psicóloga que provavelmente não tem filhos, e se os tem deve usar a palmada, que afirmava que a violência não se justifica de forma alguma (no moralista retorna o recalcado – bendito Freud!), e que da palmada ao espancamento se vai num contínuo quase involuntário – nem se percebe. Tudo muito bonito, muito libertário. Dar limites com explicações, “bater não educa, nem é um gesto de amor, é uma simples punição” etc.
Não bastasse, apresentaram o “castigo-pensador” – uma estratégia à la Supernanny (aquela terapeuta comportamental britânica que trata as crianças como camundongos com alma – dêem uma zapeada no GNT, que é um canal com público-alvo “feminino”, em que se podem encontrar desde reality shows com pequenos cães obesos com donos obesos, numa competição para ver quem perde mais gramas de suas dezenas de quilos de sobrepeso, até conversações (nada) inteligentes com Diogo Mainardi, que também perde (nosso) tempo escrevendo uma coluna (que ninguém lê) para a Veja).
Mas fiquemos no castigo-pensador. A jornalista pergunta a uma criança de uns quatro anos como é o tal castigo, ao que ela responde: “Ah, não pode deitar, nem brincar; tem que ficar sentado, fazendo nada... pensando”.
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E desde quando pensar é castigo? Pior, desde quando pensar é fazer nada? Valeria um outro post para tentar compreender de que forma, hoje, os aparelhos disciplinares infantis são mobilizados para disciplinar o subjetivável, desmobilizar as potências do pensamento – a ponto de uma criança de quatro anos dizer que não faz nada, só pensa... como se pensar fosse algo muito natural, muito simples e inato, de que as aprendizes de supernannies brasileiras ou as apresentadoras lobotomizadas de telejornal da tarde pudessem ser capazes. Artaud, Proust e Deleuze escreveram sobre de que forma os signos violentam a pensar e a buscar a verdade – não há pensar sem violência (que não é física, mas simbólica – da mesma forma que uma palmada dificilmente é violência física, mas simbólica, medo de perder o amor dos pais, introjeção da má-consciência pela via familiar). Agora, o tal “castigo-pensador” vai além da palmada: introjeta a produção da má-consciência no próprio exercício do pensar niilista; de modo que o pequeno fica lá, isolado em seu cantinho: não pode deitar, nem brincar; fica lá fazendo nada, isto é, “pensando”...
Esse novo “castigo” faz algo semelhante ao que Nietzsche já identificara em nossos sistemas de justiça civilizados: por um golpe de gênio da moral (“é moralmente errado levantar a mão para um filho”, dizem os sacerdotes da psicologia contemporânea, que só não crêem ser errado tratar as crianças como camundongos, segundo o esquema estímulo-resposta/reforço/punição) se substitui um sistema de violência e de crueldade, de afectos, em que os signos se aplicavam ao corpo (o gesto da palmadinha, que não é nem inofensiva, nem antidisciplinar – não sejamos ingênuos) por um sistema educativo que, embora seja supostamente não-violento, identifica o pensar a uma inércia niilista e despede os pais de educarem os filhos: "vai lá pro seu cantinho; como você aprontou e já tem oito anos, vai perder oito minutos da sua infância... pensando!". O fato é que se educa cada vez menos para o pensamento, e agora, ainda transformam o tempo-consigo, necessário ao pensamento, em punição, em pedagogia barata de canal fechado.
Quem visse o pensador de Rodin, com todos os músculos do corpo retesados, violentados, como que prontos para a ação – embora a cabeça, apoiada sobre o punho cerrado, ainda estivesse voltada para um ponto fixo, no limiar indiscernível entre a interioridade da relação consigo e o ato: hesitando, exercitando o pensar como liberdade –, compreenderia que se, hoje, pensar virou uma estratégia de castigo e disciplina, uma forma de fazer com que todo empenho de tempo seja niilista (uma espécie de “fazer nada” como forma de administrar as condutas infantis), a única chance de sucesso dessa nova geração será a servidão e o automatismo – nunca a perfeição de uma ação verdadeiramente livre. Melhor para a Globo: não faltarão telespectadores - tampouco, apresentadores de telejornal.
Fonte: A Navalha de Dalí

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