Gilles Deleuze
por Enrique Landgrave
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Não se sabe

Não se sabe...
Sandra Corazza

Não se sabe se a sua vida consiste numa existência individual; se a sua natureza consiste num fato biológico; ou se a sua cultura consiste num modo de ser social. Não há indicações a respeito, a não ser que, de jeito algum, trata-se de um animal rationale ou de uma imago Dei. Até que um outro – mundo possível? – chegasse, foi identificado à existência primordial. Em função de tal proveniência, através dos tempos, foi considerado como o humano em geral. E, só muito recentemente, viu-se que a sua ação transcorre de forma selvagemente sentida; logo, na antípoda do que é entendido por humano. Pluralidade de forças em permanente tensão, o seu movimento estabelece hierarquias temporárias. Pensamentos, sentimentos e impulsos encontram-se em luta, mas também seus tecidos, órgãos e células. Atua contra sentidos estabelecidos, normas coercitivas, querer divino, ídolos axiológicos da moral, arrière-monde. Opera, antes de tudo, contra a morte. Não visa objetivos, não admite tréguas, não prevê fim. A partir do combate incessante, surgem forças dominantes, que o fazem agir, e forças dominadas, que o levam a reagir. São essas forças que constituem sua vida, natureza e cultura. Sendo um fora-da-lei, fora-do-contrato, fora-da-instituição, tem retiradas as possibilidades dos seus instintos atuarem, quando fica encerrado no âmbito da Família, do Édipo, da Escola, do Estado, dos Direitos Humanos, da Paz. Então, esses instintos voltam-se contra si mesmos e o seu desenvolvimento ruma para o espírito de gregariedade: mediano, vulgar. Ao lutar contra a desvalorização dos instintos estéticos – tanto apolíneos como dionisíacos – pela razão, é um rebelde, em face do saber consciente que diminui sua sabedoria instintiva. Em seu querer, o sentir e o pensar encontram-se imbricados e o pensamento disseminado pelo corpo. Ao articular vida e pensamento, faz experiências com todas as coisas, sobretudo consigo mesmo. Detesta o preceito Tudo o que é belo é racional e nunca subordina a poesia à lógica, por considerar que os instintos vitais é que constituem sua força afirmativo-criativa. Aliando tal força à hipertrofia da consciência e da memória, esquece. Para sentir alegria, leveza, esperança, orgulho, basta-lhe a inconsciência salutar associada ao esquecimento. Instalado no limiar do instante, apaga lembranças, já que sem esquecer não age e não vive. Nas relações com o meio, a superficialidade é um dos seus traços marcantes e até mesmo definidor. Possui a pretensão de saber como suas ações são produzidas, mesmo que elas nunca sejam o que lhe parecem ser. Mostra-se, por vezes, como uma unidade, forma mais alta, suprema espécie de ser, progresso da consciência, conhecimento absoluto, critério superior de valor; embora seja apenas conjunturalmente utilizável para a manutenção da vida em grupo. Nos conceitos, gêneros, espécies, categorias, sistemas, encontra somente anseios e necessidades humanas de sobrevivência. Assim, desmascara as ilusões das ciências humanas e sociais, da religião e da moral, mostrando que elas são sintomas de um regime utilitário do agir. Sintomas que introduzem sentidos e atribuem fixidez a seu desregramento instintual. Necessário, assegura a própria existência, na medida em que se dota de um caráter simplificador. Faz-se inteligível, ao tomar consciência de si, em relação com a comunidade. Deixa, portanto, de ser incomparável, único, ilimitadamente singular, para ir se tornando confiável e constante, raso e ralo, generalizado e indeterminado, simétrico e estúpido, falsificável e traduzível na perspectiva do rebanho. Dobrando-se a tudo o que é altivo, conquistador, dominador, torna-se brando e tranqüilo, fazendo de si uma permanência na mudança. Como rede de ligação entre os humanos, equivale à regularidade dos costumes, alma, espírito, essência, sujeito, agente, objeto, causa, efeito, substrato, ser, razão, consciência, verdade, Eu. Sua moralidade define-se pela capacidade de obedecer a leis, cujo referencial regulador encontra-se na tradição, tida como autoridade superior, à qual obedece – não porque ela lhe manda fazer algo, mas simplesmente porque ela manda. Adestrado, conceitualiza pela identificação de dessemelhantes; pensa as coisas mais simples do que são; e responsabiliza- se por suas ações, incluindo o ato de pensar. Desse modo, serve aos fracos, às almas iguais, e suprime a diferença, gerando metafísicas assentadas em falsos problemas. Caudatário de forças reativas, que se colocam em primeiro lugar, faz com que essa reatividade elimine a primazia de suas forças agressivas – criadoras de novas direções. Nesses arranjos mecânicos, regulações, funções adaptativas, expressa o poder das forças dominadas; embora realize esforços continuados por mais potência – como vitória sobre si mesmo, tendência a subir, vontade de auto-superação. Por isso, é essencialmente mutável, princípio pelo qual a sua própria vida se supera. Como uma ficção convencional – mas dotada de um caráter de realidade –, vive um processo de formação, no qual a moralidade é o meio necessário para o seu amadurecimento enquanto indivíduo soberano. Então, livre, de vontade inabalável, prescinde da moral, libertase dos costumes, cria valores e organiza a exterioridade mediante a introdução de formas, que têm seu respaldo na interpretação e na avaliação. Como produto dessas ações, torna-se autônomo e supramoral. Desprendido das coordenadas sociais e do poder ordenador da lei, propugna um nada de teórico e de prático, e tudo pelo trágico, fazendo o mundo à sua medida e tendo o conhecimento do mundo que merece. Não se sabe se esse desterritorializado ainda pode ser chamado infantil, como um derivado da ação genérica da cultura; ou se terá chegado o momento, em que já não tem nenhuma importância chamar ou não chamar infantil àquilo que dele é dito e pensado. Deslocado no tempo, precipitado e ativado, tornado positivo e criador, não pode deixar de existir. Só que já não é mais ele mesmo... Desligado da falsa infância que nunca houve, faz proliferarem desejos, paixões e conexões com o campo social e político. De maneira a ser irremediavelmente multiplicado, enquanto condição da própria criação: “um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’” (Nietzsche, s./d., p. 44).


Recebido em maio de 2005 e aprovado em julho de 2005.
Referência bibliográfica
NIETZSCHE, F.W. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1205-1208, Set./Dez. 2005
Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>
Fonte da imagem: servidorpublico.net

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