Autor: Valter A. Rodrigues
do blog Cartas Rizomáticas
Um afeto tão delicado...
Passo várias vezes por você. Encontros circunstanciais: eu a cumprimento, trocamos uma ou outra palavra. Nada mais. Isso dura. Há o fato de freqüentarmos o mesmo espaço, de nosso tempo, às vezes, coincidir. Chegamos a ficar lado a lado uma ou outra vez, cada um ocupado com as próprias ações.
Como isso se altera? É difícil precisar o momento. Um encontro fora das referências cotidianas. Um momento em que estamos menos absortos. Não importa. Um dia trocamos palavras um pouco mais prolongadamente, nos olhamos um pouco mais demoradamente. Há até um sorriso mais extenso, a um comentário que parte de um dos dois. Uma proximidade que permite uma apreensão mais fina de nossos contornos. Alguns dizeres que se encontram com outros dizeres, que remetem a uma outra referência. Talvez uma coincidência de gosto, tal música, tal filme, tal texto lido com uma mesma intensidade.
O que sei: nesse momento, não localizável precisamente, um rosto se desenha em meu espírito. Um rosto que, quando a encontro, reconheço nas suas linhas ainda tênues como ocupado por uma inespecífica familiaridade. Algum brilho que não sei de onde se manifesta. Um viço, um prazer, uma alegria atravessando esses momentos em que o rosto torna-se presente.
O dizível talvez só seja significável como uma diferença. Não posso dizer que o amor (o que chamamos de) começa aí, como somatória de gestos que fazem com que depositemos, um no outro, um certo sentido de felicidade. Uma certeza. Um charme. Pois nada me autoriza dizer que isso resulta de uma somatória, que se compõe desses vários encontros tomados na sua seqüência, como se a familiaridade e o reconhecimento fossem efeito de uma cena que, por se repetir, permite uma proximidade "natural" (embora seja assim que muitas vezes se rememora um "conhecimento": como algo que progride). O que tenho: um "eis aí".
Gestos compõem linhas e planos num fora, desenham a geografia de um corpo que, por se desenhar desses gestos, reconheço como singular. Mais: essa geografia se desenha sobre um corpo que até então não significava isso, enquanto alguma coisa capaz de me mover, e ganha sentido à medida que meus gestos, indo na sua direção, o apreendem e lhe dão e (ao mesmo tempo) lhe descobrem a forma. Isso é simultâneo. O acontecimento abre um devir.
Algo que se realiza fora, entre. Um plano de consistência. Uma vibração. Aí, os corpos: superfícies de reverberação.
Um laço tão íntimo...
Não posso ainda dizer: você é única. Nem você, nesse momento em que estamos próximos, pode me dizer, você é único. Ao contrário, somos muitos. Mas basta que nos olhemos e, iludidos na vã promessa, comecemos a nos dizer a única, o único, para que nossos corpos percam sua superfície, para que nossos olhos simulem mais além. E quando a encontro, não a olho no seu movimento de chegar, eu a busco antes, na minha espera, na possibilidade de você não vir, esse sempre possível desencanto. Quando a encontro, não a olho mais. Eu a vejo antes, faço de você a mesma, busco fazê-la coincidir com meu olhar. No que você me falta.
Começo a chamar isso de amor. E a esperar que você chame isso de amor. O que acontece.
Tudo parece bom. Tudo parece certo. Um estado feliz que se prolonga. Chamo de tremor o que um dia atravessou meu corpo, iluminando-o de não sei quê. Insisto em chamar de incerteza o que me tomava como um vento indiscernível. Pouco mais que uma brisa. Ou menos...
É quando percebo: esse vento, não o sinto mais. Mas insisto: eu o troquei por algo mais profundo, por essa possibilidade de olhá-la e conhecê-la nos mínimos gestos, de antecipar-lhe as respostas, e pelos olhares cifrados que aprendemos a trocar. Tão íntimos... E isso não me alegra.
Fazemos de nossa fala a contínua evocação do momento em que ainda éramos estranhos. Nos acostumamos a rir, gozosos, do que escolhemos chamar de primeiras vacilações. E criamos histórias, inventando um tempo possível em que eu a olhava sem saber como chegar, e de você que esperava isso... Ou o contrário, tanto faz. São histórias de embalar desejos e construir o tempo.
Às vezes trocamos fantasias. Brincamos que somos estranhos, que estamos nos conhecendo agora, e você me olha dissimulada, eu brinco de macho pronto para o ataque, você de fêmea em fuga. A brincadeira dura, se prolonga, sabemos onde ela irá terminar.
Às vezes brigamos. Invocamos a memória, construímos nossas falas sobre faltas e deveres.
Às vezes ficamos quietos. Nem um nem outro está ali. Nem um nem outro pergunta onde está. Não estar basta.
Demoro nas ruas. Você também. Nada acontece. Alguns rostos se desenham aqui e ali. Mas desaparecem. Às vezes é uma leve brisa, que me faz, sem pensar, puxar um pouco o casaco, evitando olhar à volta. Apresso-me, compro flores, estou sempre em cansado retorno.
Um amor tão profundo...
Estamos sentados a uma mesa, você absorta em suas questões, eu nas minhas. Quase não nos olhamos, quase não falamos. Peço desculpas se algum ruído que eu faça a perturba. Desculpas que vêm quase por dever.
Um dia, talvez aconteça que, nesse estar distantes na proximidade, nos incomodemos além dos estares cotidianos. Pode ser que um de nós se dirija à janela, encontre a cidade reduzida a puros pontos luminosos e, sem dizer nada, recue até a porta, abrindo-a devagar e silenciosamente. E parta, mesmo que por um quase imperceptível afeto. Será um começo.
Valter A. Rodrigues
do blog Cartas Rizomáticas
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