Gilles Deleuze
por Enrique Landgrave
... linhas de fuga - devir - imanência - repetição - singularidade - corpo sem órgãos - sentido - plano - multiplicidades - diferença - sensações - arte - máquinas desejantes - intensidades - máquinas de guerra fluxos - rizoma - abecedário - hecceidades - escrileituras - educação - vida - literatura - performance ...

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Provocações I - Um Convite à Filosofia da Diferença

Fui convidado a participar deste espaço dedicado ao pensamento do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995); filósofo, aliás, com o qual procuro agenciar de formas as mais inusitadas e que está sempre, com sua violência, disposto a me (re)-lançar à ignorância – àquela ignorância da qual necessitamos e que deve nos acompanhar se queremos escrever, ainda que uma única linha quebrada; “suprir a ignorância é transferir a escrita para depois, ou melhor, torná-la impossível” (DELEUZE, 2006, p. 18). É uma nova noção de ignorância. Uma ignorância sem má-consciência (“Eu sou ignorante, o que eu faço?”), positiva e afirmativa. Não é a ignorância da falta e da imobilidade - não saber escrever, não saber ler, não saber pintar, não saber cantar etc. -; a ignorância como condição de possibilidade da escrita. A princípio, tratar-se-ia de enviar alguns escritos sobre a Filosofia da Diferença, para que então eles fossem expostos aqui no Blog, mas decidi... decidi fazer algo um pouco diferente, decidi escrever um texto inaugural, de certa forma inédito, para ocupar duas funções muito precisas: 1) como agradecimento pelo amável convite feito pela Tânia Marques, com a qual compartilho o amor pelo filósofo (agradeço a confiança em meu pensamento, em minha escrita singela); 2) ele seria também como um “olá!” muito especial – um “olá!” propriamente filosófico, pelo qual eu não apresentaria a minha pessoa; isso é horrendo e tedioso, – Deleuze diz, e com razão: “é uma catástrofe os encontros com pessoas” -, mas os devires que compõem o meu pensar.

Diferença e repetição é, talvez, um dos mais belos livros da história da filosofia, um livro grave e alegre, no qual se agitam questões sem as quais não pensaríamos o contemporâneo de maneira efetiva, isto é, segundo suas forças próprias. Ele põe em xeque regimes de signos muito variados e propõe, à maneira de Nietzsche, uma transvaloração de todos os valores – no caso, os valores da representação. Mas perguntarão alguns: como fazer deste livro um manual para a ação política? Como aplicá-lo a uma situação concreta? Isso é muito importante, principalmente pelo fato de Deleuze evocar, como Espinosa, a experimentação em detrimento da teoria. Meu professor, numa aula esclarecedora sobre a filosofia da Diferença, perguntou aos alunos: como fazer política – e levantou o Diferença e repetição, para que os alunos o vissem – com isto? Como fazer uma ética com isto? Uma pergunta estarrecedora, sobretudo para um deleuzeano como eu. Na hora, eu não respondi, apenas observei, com atenção quase religiosa. Não era uma objeção, e eu sabia muito bem disso. Logo depois ele começou a explicar como que, para Deleuze, é no campo da Estética que tudo acontece e as lutas se decidem; o que rendeu uma aprazível conversa no intervalo da aula.

Muitos dirão que Diferença e repetição é ainda um livro demasiado duro, que não conseguimos ler sem enlouquecer - ou quase. Com efeito, Deleuze mesmo confessa que se trata de um livro carregado pela cultura academicista. Ma ele dá testemunho, a despeito de sua dificuldade, de uma louca criação de conceitos pouco vista na história da filosofia. Eles saltam, aqui e ali, e daí provém sua riqueza filosófica, que não é abstrata, nem pedante, nem verborrágica, como querem fazer parecer alguns “críticos severos”. Mas voltemos à nossa questão. O que fazer com ele? Como responder, a partir do que nele está escrito, ao intolerável do nosso tempo? São questões necessariamente ligadas aos nossos anseios, às singularidades que nos constitui, hoje, com tudo o que nos acontece, de bom e de ruim e que nos imprime a sua marca. O que é o tráfico, a favela, a violência progressiva da sociedade brasileira, a corrupção estatal; os protestos da USP, dos policiais na Bahia, dos professores do ensino público; a torpeza intelectual, a pobreza da nossa cultura, as vidas vampirizadas pelo capital; a violência policial no Largo da Ordem no pré-carnaval deste ano, a greve dos cobradores de ônibus e as negligências da URBS etc.? Em suma, o que é pensar a diferença, hoje, a partir de todas as questões que nos desassossegam e que nos forçam a pensar?

Primeiro, é preciso entender o que é a diferença da qual Deleuze fala. Não podemos confundi-la com a diferença da qual nos fala a mídia e nossos políticos empenhados na tolerância – uma fórmula vazia, afinal, que se faz em nome do princípio da identidade e emperra os agenciamentos – e na diversidade – politicamente envolvida com a identidade. Ora, Deleuze já nos esclarece que a diferença não é o diverso: “O diverso é o dado. Mas a diferencia é aquilo pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado como diverso” (DELEUZE, 2006, p. 313). Afirma-se constantemente uma identidade entre diferença e diversidade, o que não é verdade para Deleuze. A diferença não depende da diversidade e de sua manutenção, é o diverso que depende da diferença como aquilo pelo qual o diverso é produzido enquanto tal. Não é à toa que Deleuze, ao definir a tendência, diz: é aquilo que difere de si mesmo. A diferença, aí, não é entre duas tendências – aí, sim, poderíamos falar em diversidade - mas a diferença de uma tendência para consigo. Se fosse de outro modo, só poderíamos pensar numa diferença meramente extrínseca. A diferença da qual Deleuze se vale tem mais a ver com as metamorfoses dionisíacas do que com um discurso em favor de uma diversidade identitária, que propaga uma diferença meramente extrínseca e que não alcança o cerne da questão. Dir-se-á, por exemplo, que o homossexual é diferente do heterossexual. Ora, é uma diferença extrínseca entre dois termos: de um lado o “homossexual” e do outro o “heterossexual”. Do mesmo modo cada termo responde à identidade que lhe assegura uma fixidez capaz de garantir a diversificação. Não é isso que Deleuze pretende, uma vez que ele mesmo afirma não haver um ou dois sexos, mas n sexos, fazendo explodir toda forma de identidade.

Segundo, é possível uma interpretação não-filosófica de Diferença e repetição? Deleuze sempre ratificou a importância de uma compreensão não-filosófica da filosofia. Entretanto, não era ingênuo o bastante para achar que isso seria sempre possível. Um Kant, diz ele, talvez não dispusesse de uma leitura não-filosófica, não por falta de leitores, mas por sem impossível fazê-la no seu caso. Eu ainda acrescentaria um Hegel, uma vez que, pelo menos para mim, a Fenomenologia do Espírito permanece sendo um livro impossível de ser lido sem um olhar propriamente filosófico. Ao contrário, ele afirma que tanto Espinosa quanto Nietzsche poderiam ser lidos por qualquer um. Um camponês, por exemplo. E Diferença e repetição? Ele poderia ser lido por qualquer um? Ou seria ele objeto de especialistas, de filósofos profissionais? Um esquizofrênico, um cientista, um literato, um pintor, um músico, ou, ainda, um operário, poderia lê-lo e dele extrair algo que funcione? Como ultrapassar o pesadume universitário da obra sem, no entanto, reduzi-la, depená-la, estragá-la? Como fazer uma leitura por afetos e por perceptos? Uma leitura que, é certo, não desconsidera os movimentos insólitos do conceito. Ler Diferença e Repetição pela primeira vez, e sem qualquer respaldo acadêmico, é assustador. Lembro-me de tê-lo lido e me perguntado, tremendamente assustado: “o que eu faço com isso?”. É, sem dúvida, um livro intimidante a qualquer leitor incauto. Eu era um leitor incauto. Saíra da leitura suave do Diálogos direto para Diferença e repetição.

Nós, leitores de Deleuze, não podemos nos furtar de tais questões referentes à funcionalidade de seus escritos, pois é aí que se decide a efetividade de sua filosofia. É certo, porém, que não se trata de reduzi-lo a opiniões otimistas ou pessimistas. Ora, há ainda muito trabalho. Apesar de uma obra volumosa, Diferença e repetição é apenas um esboço, ou, o aceno para um pensamento não-representativo, que não se sabe se virá, se já veio ou se já foi. A filosofia da Diferença está ainda por se fazer, é Deleuze quem diz: liberem o simulacro, acreditem na força do simulacro, a despeito de todas as objeções. É como um desafio. As cartas estão dadas e nada ainda fora decidido. Não adianta dizer que não dá para pensar fora da caixinha da representação, é simplesmente risível, pois a questão é outra, se passa noutro lugar: como fazer isso? Como resgatar a diferença? Como fazê-la falar por si? É como um colega dissera num dos encontros do Grupo de Estudos Deleuze: “Deleuze não cai tão fácil, ele tem as suas armas”. Quais são? E como fabricar nossas próprias armas? É a questão das linhas de fuga ativas, que define – como observa Zourabichvili - a orientação prática da filosofia deleuzeana. Sobre o ato de resistência, Deleuze disse tudo: “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas” (DELEUZE, 1992, p. 220).

Vale ainda pensar a filosofia da Diferença pelo prisma do pós-modernismo. Sim, é um nome terrível, que gera muitas polêmicas e desagrados; os deleuzeanos sabem muito bem que Deleuze nunca se sentiu confortável com esse termo. Pélbart conta que Deleuze abandonara o seu conceito de simulacro devido à apropriação indevida que o pós-modernismo fizera dele. Com isso, ele esperava desfazer os mal entendidos com sua filosofia. É certo, contudo, que não foi o bastante. Ainda hoje se tenta pensar a filosofia da Diferença como mais um modismo pós-moderno. Cedo ou tarde, os deleuzeanos vão se deparar com esse problema. O pós-modernismo vampiriza as filosofias com que tem contato. Não é diferente no caso de Deleuze. Ora, o que resta do conceito de simulacro deleuzeano após a apropriação do pós-modernismo? Ele o encerra na negatividade. O pós-modernismo é a chaga do pensamento contemporâneo, não por recusar a tradição, mas por mergulhar na indiferença filosofias tão distintas. Diz-se constantemente que o pós-modernismo é o mais recém formato de niilismo, todavia, a filosofia da Diferença nada tem a ver com niilismo. Nietzsche grita nos textos deleuzeanos: isto não é niilismo! Mas, afinal, o que está acontecendo? E como frear essa despotencialização do pensamento?

Muita coisa está no ar. Não é de propósito que encerro este texto sem uma resposta, sem uma explicação do ponto de vista do conceito, sem, outrossim, uma proposta de ação e de luta específicas – quem dera a política fosse tão simples! Meu propósito foi o de provocar, qual quer coisa, por menor que fosse, nos meus leitores. Um provocador, é o que sou: mas não se provoca pessoas, provoca-se o pensamento. E como escrito inaugural – creio eu – ele não poderia ir muito longe. Seria preciso outros textos para o aprofundamento das questões aqui postas. Quis, também, preparar o solo para minhas próximas apresentações, fazer algumas marcações, estabelecer alguns vetores, para tornar o movimento possível. Depois das desterritorializações vêm as reterritorializações, que nos permitem amar, falar, sentir, pensar – no meu caso, aqui: escrever. Agradeço, uma vez mais, pela confiança depositada em minhas potências, potências das quais até mesmo eu suspeito. Ao mesmo tempo, agradeço pela chance de enfrentar minha fobia social, pois se trata, aqui, de me lançar num território estranho, que nada me dá previamente e que exige de mim toda uma experimentação, uma coragem e um pouco de loucura. E para finalizar, uma citação de Diferença e repetição:

“O simulacro é o verdadeiro caráter ou a forma do que é – “o ente” – quando o eterno retorno é a potência do ser (o informal). Quando a identidade das coisas é dissolvida, o ser escapa, atinge a univocidade e se põe a girar em torno do diferente. O que é ou retorna não tem qualquer identidade prévia e constituída: a coisa é reduzida á diferença que a esquarteja e a todas as diferenças implicadas nesta e pelas quais ela passa. É neste sentido que o simulacro é o próprio símbolo, isto é, o símbolo na medida em que ele interioriza as condições de sua própria repetição.” O simulacro apreendeu uma disparidade constituinte na coisa que ele destituiu do lugar do modelo.” (DELEUZE, 2006, p. 106)

                                          Raony Francisco Moraes 

                                UFPR - Universidade Federal do Paraná

Bibliografia:

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2ª edição, 2006.

1 comentários:

Tânia Marques disse...

Raony, que preciosidade o seu discurso!Inteligência transbordante e contagiante.Só tenho a agradecer-lhe pela notável contribuição a este blog. Sinta-se à vontade para escrever nele quando desejar, és um convidado permanente, sinta-se em casa. Beijo grande

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